Decisão
da Justiça Federal de Piracicaba, com fortes timbres ecológicos, se apresenta
como um clamor pela preservação ambiental, a partir da proibição da queima da
palha da cana. Decisão importante: que faça o Judiciário aquilo que se omitem
as autoridades ambientais.
A região de Piracicaba, a 170 quilômetros de São
Paulo prosperou muito: sua indústria metalúrgica, de veículos pesados e em
poucos meses de autos, canavieira, seu comércio, sua boa rede hoteleira...e por
aí vai.
Nessa região, há fortes redutos turísticos, como as
cidades de Água de São Pedro e São Pedro, a cerca de 30/37 quilômetros da
cidade de Piracicaba.
Porém, Piracicaba, principalmente, por cerca de seis
meses no ano, nas épocas de inverno com baixa umidade do ar, é invadida por
nuvens de fuligem provenientes de queima da cana, um método atrasado que se
pratica na região. Desse modo, as ramas são conduzidas por treminhões sem
folhas, facilitando o trabalho nas usinas e reduzindo custos.
Há algum tempo, de São Pedro, duma chácara, tive
oportunidade de enxergava ao longe o clarão da cana sendo queimada em grandes
proporções pelos lados da cidade de Charqueada que também compõe a região de
Piracicaba.
E essa “chuva” de fuligem é diária, infestando quintais,
residências e, claro, os pulmões dos que estejam mais perto dela.
Claro que para os representantes da indústria da
cana, sempre se ouvem discursos equivocados, num certo grau de descaso, já se
alegando nesse âmbito que os resíduos da cana queimada não seriam danosos à
saúde.
Essas divergências se acentuam nas épocas de
colheita–queima e diminuem quando ela se encerra.
Pois bem, havia, como há, acomodação das autoridades
ambientais nessa matéria, até que a juíza da 2ª Vara Federal de Piracicaba, Daniela Paulovich de Lima proferiu em Ação Civil
Pública proposta pelo Ministério Público Federal importante decisão concedendo
tutela antecipada (liminar), proibindo a queima da cana na região. (1)
No detalhamento da decisão, não parece ter esquecido
a juíza nenhum dos aspectos danosos dessa prática à saúde humana e ao meio
ambiente, compreendo fauna e flora.
Com efeito, na abrangente decisão se lê:
“...reconheço estar presente o
requisito da urgência, necessário para a concessão da antecipação da tutela,
uma vez, que a continuação da queima controlada da palha da cana, já iniciada
nesta safra, vem causando e causará danos irreparáveis a toda a população da
região abrangida pela subseção de Piracicaba e que está continuamente sob a
ação dos resíduos da referida queimada há anos. Além disso, onera o SUS que
fica sobrecarregado com o atendimento da população doente em decorrência dos
resíduos da queima da palha da cana, bem como causará dano irreparável a fauna
e flora atingidas pelas queimadas como demonstrado na inicial.”
Foi, porém, na questão ecológica, sem esquecer que,
afinal, o ser humano faz parte dela e também paga por seus danos, que a juíza
acolheu o argumento de que a queima da palha da cana afeta o próprio Rio Piracicaba,
símbolo e orgulho da cidade e sua bacia hidrográfica, “com reflexos
contundentes sobre a qualidade dos recursos hídricos indispensável a um número
elevado de pessoas e indeterminado de espécimes da fauna e da flora.”
Nessa linha de ideias, foi exatamente na fauna que a juíza
demonstrou forte sensibilidade:
A queima produz
“... danos à fauna e à flora, eis que
o uso do fogo chega a provocar nas áreas submetidas à prática das queimadas
temperaturas superiores de até 800ºC, expondo de maneira direita e
incontrolável espécimes da fauna silvestre ou não, ameaçados de extinção ou
não, que habitam os canaviais e áreas adjacentes à morte cruel por carbonização
ou asfixia, bem como a graves ferimentos por queimaduras e atropelamentos
decorrentes de fuga das áreas atingidas para as vias rodoviárias próximas...”
Não poucos artigos tenho escrito de modo até
emocional quando tratei da queima de imensas áreas de florestas, porque ela
significa o fim de espécies vegetais cuja composição é ainda desconhecida e
poderia conter elementos medicinais mas, principalmente, pela crueldade com os
animais que fazem da floresta seu lar e o seu modo natural de sobrevivência e
que são dolorosamente exterminados.
O consolo é que cresce o contingente nestes tempos
de devastação e desrespeito ambiental que se preocupam também com a fauna, pelo
que mui meritória a explanação da juíza nesse tema.
No que se refere propriamente à queimada de matas,
da qual deriva a queima da cana, lembra a juíza, do escritor Sérgio Buarque de
Holanda, transcrevendo trecho do seu livro “Raízes do Brasil”:
"Mostra-se
neste trabalho como o recurso às queimadas deve parecer aos colonos
estabelecidos em mata virgem de uma tão patente necessidade que não lhes
ocorre, sequer, a lembrança de outros métodos de desbravamento. Parece-lhes que
a produtividade do solo desbravado e destocado sem auxílio do fogo não é tão
grande que compense o trabalho gasto em seu arroteio, tanto mais quanto são
quase sempre mínimas as perspectivas de mercado próximo para a madeira cortada.
(pg. 67)". Aos índios tomaram ainda instrumentos de caça e pesca,
embarcações de casca ou tronco escavado, que singravam os rios e as águas do
litoral, o modo de cultivar a terra ateando (fogo) primeiramente aos
matos." (pág. 47)"
Essa barbárie não
passou despercebida do próprio Euclides da Cunha nos seu “O Sertões” que também
explana sobre o processo quando trata da “terra” em sua obra, referindo-se
sobre as técnicas dos “fazedores de desertos”, texto que já me vali em outros
artigos:
"Esquecemo-nos,
todavia, de um agente geológico notável – o homem. Este, de fato, não raro
reage brutalmente sobre a terra e entre nós, nomeadamente assumiu, em todo o
decorrer da história, o papel de um terrível fazedor de desertos. Começou isto
por um desastroso legado indígena. Na agricultura primitiva dos silvícolas era
instrumento fundamental – o fogo".
E com as queimadas, imensas áreas de "flora estupenda" foram e vão sendo dizimadas sobrevindo o deserto.
E com as queimadas, imensas áreas de "flora estupenda" foram e vão sendo dizimadas sobrevindo o deserto.
Disse mais Euclides da
Cunha:
“Durante
meses seguidos viram-se no poente, entrando pelas noites dentro, o reflexo
rubro das queimadas.
Imaginem-se
os resultados de semelhante processo aplicado, sem variantes, no decorrer dos
séculos...” (3)
Na Amazônia e outras
regiões há imensas áreas degradadas por esse processo insano, clamando por urgente
restauração.
Por tudo isso, julgo
importante a decisão de uma juíza federal do Interior de São Paulo, um clamor
que obteve repercussão nacional, pela sua abordagem profunda e sensível sem
renunciar à técnica jurídica. Trata-se de decisão extensa que poderá ser
encontrada na íntegra no portal do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. (4)
A decisão impõe medidas
para seu cumprimento e multa diária por descumprimento.
Que faça o Judiciário
aquilo que os órgãos públicos não fazem e se omitem normalmente por conta de
“jogos de interesse”.
Já há um monumental
atraso para um basta nessa irresponsabilidade predadora.
Legendas:
(1) São Réus na ação: Estado de
São Paulo, Cetesb - Companhia Ambiental do Estado de São Paulo, Ibama -
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis;
(2) Cia das Letras, 16ª edição;
(3) “Os Sertões” de Euclides da Cunha - Livraria Francisco Alves, edição
de 1952
(4) Processo n° 0002693-21.2012.4.03.6109 da 2ª Vara Federal de
Piracicaba.
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