22/11/2009
O “dia da consciência negra” (20 de novembro) e a “consciência branca”. Entre Zumbi dos Palmares e Joaquim Nabuco. A abolição da escravatura em 1888.
De um prospecto sobre o 20 de novembro (1):
“O Dia da Consciência Negra é dedicado à reflexão sobre a situação do negro na sociedade brasileira e celebrado em 20 de novembro. Esta data foi escolhida por coincidir com a data da morte de Zumbi dos Palmares, em 1695. Durante cem anos (1595-1695) o Quilombo dos Palmares (situado entre os estados de Alagoas e Pernambuco) constituiu um foco de resistência aos ataques da Coroa. Em função da sua importância, tem sido um marco nas relações sociais e culturais que contribui no fortalecimento de ações para ampliação da cidadania”.
Essa “consciência”, dizem muitos, teria até mesmo o condão de ofuscar a Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel em 13 de maio de 1888, quase dois séculos depois da morte de Zumbi.
Na crônica a seguir resgato um pouco da “consciência branca” que resultou na libertação dos escravos naquela data.
CRÔNICA: CONSCIÊNCIAS
Num colégio estadual de periferia no ABC, porque como mau aluno vi-me jubilado de outro colégio também do Estado, elitista, tive um professor de português franzino, admirador ardoroso de Joaquim Nabuco, pernambucano tanto quanto ele. Promovera esse professor no colégio um concurso literário sobre Nabuco. Desse professor não se poderia dizer que tivesse pele branca.
Desenvolvi com ele interessantes projetos, até mesmo o lançamento de um jornal semanário no bairro e por aí caminhou nosso relacionamento.
Nada sabia de Joaquim Nabuco até participar do concurso. Alguns resquícios ficaram na memória. Situo-me agora: nascera Nabuco no Recife em 1849, era monarquista e abolicionista ferrenho falecendo em 1910 em Washington, como embaixador do Brasil.
Há pouco, uma edição de bolso de sua obra “Minha Formação” veio às minhas mãos duma dessas gôndolas giratórias de livrarias. (2).
No ato, lembrei-me daquele concurso e do meu professor lembranças perdidas naqueles idos felizes e “imortais”.
Texto rebuscado, porque Nabuco fora sobretudo um intelectual, ao chegar à última página lamentei, sabendo que um dia desses teria que reler a obra. Trata-se de um documento valioso porque fora escrito por alguém contemporâneo dos fatos e que, em muitas ocasiões fortemente tivera influência sobre eles.
Atenho-me à sua luta abolicionista.
Morando com a madrinha, ainda menino tivera Nabuco uma primeira experiência com o temor de um escravo que fugira duma senzala e agarrara seus pés, implorando que fosse comprado por sua madrinha porque o seu senhor, muito severo, castigava seus escravos com crueldade.
A partir dessa experiência, revelando que absorvera a escravidão “no leite materno que me amamentou”, “uma carícia muda” que o envolveu diria: “Assim eu combati a escravidão com todas as minhas forças, repeli-a com toda a minha consciência, como a deformação utilitária da criatura...”
Com a morte de sua madrinha, dona do engenho Massangana, relata ele quando de sua volta 12 anos depois, referindo-se aos escravos que o serviram: “Não só esses escravos não se tinham queixado de sua senhora, como a tinham até o fim a abençoado. Eles morreram acreditando-se os devedores (...) seu carinho não teria deixado germinar a mais leve suspeita de que o senhor pudesse ter uma obrigação com eles, que lhes pertenciam.” (...) Oh! Os santos pretos! Seriam eles os intercessores pela nossa infeliz terra, que regaram com o seu sangue, mas abençoaram com seu amor!”
Claro que esse sentimento de gratidão de Nabuco provinha do que recebera de seus escravos que, no fundo, fora viva retribuição do modo como foram tratados no engenho de sua madrinha Ana Rosa.
Fora o Brasil o último país a promover a abolição dos escravos, fato que “humilhava a nossa altivez e emulação de país novo”, embora ocorressem muitas libertações gratuitas. Há referências de que na Província (Estado) de São Paulo, até 1885, cerca de 11 mil escravos haviam sido libertados, embora Nabuco revelasse que em 1879, quando iniciada a campanha abolicionista estavam ainda sob jugo quase dois milhões de negros.
O tráfico deixara de ser praticado em 1850. Em 1871, a Lei do Ventre Livre determinara que os filhos dos escravos, até que completassem oito anos ficariam com a mãe. Depois dessa idade, até os 21 anos, prestariam serviços aos seus senhores, o que significava “um regime igual ao cativeiro.”
Em 1888, Nabuco, como deputado, depois de constatar que o clero saíra da neutralidade em relação à abolição, resolvera ir a Roma e obter uma audiência com o papa Leão XIII – subscritor da encíclica “Rerum Novarum” de 1891 que entre outros temas apontou as condições subumanas de trabalho e as extensas jornadas exigidas dos operários – na qual solicitaria uma declaração do pontífice contra a escravidão no Brasil. Fora muito bem recebido e sensibilizara o papa. Mas a abolição viria logo, poucos dias depois com a Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel em 13.05.1888.
Nabuco explana que ao assinar tal lei, sabia a princesa que dos negros só poderia contar com seu sangue e “ela não o queria nunca...” e que a classe proprietária “ameaçava passar-se toda para a República...”
Ela seria proclamada 18 meses depois. À família imperial fora imposto o exílio.
A abolição dos escravos não se constitui causa próxima do advento da República, até pelo modo como fora proclamada, meio atabalhoadamente.
Mas, não deixaria a princesa de comentar:
“Talvez seja devido a essa lei que estejamos indo para o estrangeiro, mas se as coisas fossem repostas, não hesitaria em assiná-la”, apontando para a mesa na qual havia mandado gravar no mármore a data 13 de maio de 1888.” (2).
Com Nabuco muitos outros abolicionistas têm sua luta gravada, inclusive os que a ele se uniram, uma luta de consciência branca, negra, incansável. Consciências, redenções, mesmo que a cor da pele, então, fizesse diferença, a nossa vergonha que até hoje de um modo ou outro ainda reacende.
Referências
1. Prospecto da Prefeitura Municipal de Piracicaba (SP) – Secretaria de Ação Cultural (2009);
2. Joaquim Nabuco, “Minha Formação” – edição Martin Claret (a falha nessa edição constitui-se na falta de notas explicativas a determinados episódios muito pessoais do autor que exigiriam esclarecimentos de rodapé);
3. Revista “Veja” – Edição especial – “República”, de 15.11.1989.
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