10/05/2009
O debate intempestivo de reabrir a Lei da Anistia para punir torturadores
O ministro da Justiça, Tarso Genro, defendeu, há pouco, a punição de militares, policiais e agentes do Estado que tenham praticado tortura, assassinatos e violações dos direitos humanos durante o regime militar (1964-1985). No entender do ministro, essas práticas constituem crimes comuns, e não crimes políticos, e por isso seus autores não podem ser beneficiados pela anistia de 1979.
Genro fez as declarações no Ministério da Justiça ao abrir uma audiência pública que tinha por tema "Limites e Possibilidades para Responsabilização Jurídica dos Agentes Violadores de Direitos Humanos durante o Estado de Exceção no Brasil". O ministro afirmou que a defesa da punição de torturadores e assassinos não é "revanchismo" do governo, e sim parte de uma discussão democrática e necessária. "O povo e o governo que têm vergonha têm de fazê-la, sem se incomodar com insinuações de pequenos blogs que nos acusam de revanchismo. É uma discussão de fundo sobre as instituições da República e o futuro da democracia", declarou Genro.
Quem se propuser a pesquisar um pouco que seja o que acontecia nos porões das polícias políticas (DOI-CODI e assemelhados), nos tempos da ditadura militar, certamente que se espantará com o nível de violência e sadismo ali praticados
Essa crueldade não foi dirigida apenas aos combatentes que empunharam armas, mas também aos intelectuais e jornalistas que apenas expunham idéias contrárias ao sistema instalado.
Escrevi alhures, por ouvir e ler depoimentos, que entre os primeiros – os opositores armados do regime -, uma das piores torturas era a iminência de serem descobertos em suas células. Depois dessa tortura angustiosa, vinha a tortura física, psicológica, em muitos casos dilacerando de modo indelével a interioridade dos torturados.
As forças da repressão impuseram muitas mortes a esses combatentes incertos armados e sem povo. Fora, por outra, o argumento da “linha dura” dos militares para mais persegui-los e mais torturá-los. E pelo endurecimento do regime. A história recente repetia a mesma fórmula do Estado Novo.
A Lei da Anistia é de 1979 (Lei n° 6883). No seu artigo 1° perdoava todos os que “cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.”
Mas, fazia a Lei a seguinte ressalva no § 2º desse artigo:
“Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal.” (Não há como negar o uso do eufemismo nessa última expressão da Lei).
O clamor que se seguiu pela “anistia ampla, geral e irrestrita”, acabou por incluir em seus termos mesmo esses que praticaram tais delitos, seqüestros e “atentados pessoais”.
Com a amplitude da anistia, havia o lado repressor que dela também se beneficiaria. E nem poderia ser de outro modo. Seria inadmissível passar a borracha nesses delitos referidos e deixar em aberto os dos repressores que, no fundo, detinham a mesma disposição de luta em seu próprio campo mesmo que enlouquecidos.
A Constituição de 1988, toda ela elaborada no Congresso Nacional nove anos depois diria na alínea VIII do artigo 4º que a República Federativa do Brasil seria regida, entre outros princípios, por este:
“VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo”.
Depois faria expressa menção aos dois lados da questão, no artigo 5°, aquele que trata dos direitos fundamentais, a tortura e o terrorismo colocados lado a lado:
XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;
E este inciso que se refere à não prescrição de tais crimes:
XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;
Após a Constituição de 1988, advieram legislações – reconhecendo a desigualdade de forças e abusos naqueles idos – que determinaram indenizações públicas em dinheiro aos familiares dos mortos na luta armada contra as forças militares e mesmo aos perseguidos que tiveram a vida civil prejudicada, aí incluídos os torturados. O Judiciário também acolhia pleitos nesse sentido, nos casos comprovados de tortura.
A despeito dessas concessões obtidas na área da administração ou no Judiciário, o tempo foi passando e, entre muitos, as feridas cicatrizadas. Para outros ou para suas famílias, compreensível, as sequelas dos maus tratos não foram suplantadas com facilidade.
Havia, então, passados 30 anos da Lei da Anistia, em maior ou menor grau, certo conformismo até porque muitos dos perseguidos e torturados tornaram-se influentes na vida política e social brasileira.
Eis que, num momento dado, o ministro Tarso Genro, saiu-se com aquela declaração de rever a Lei da Anistia para iniciar um processo de punição aos torturadores.
Qual o significado agora de punir esses algozes, depois de tanto tempo, levantar essas chagas? Para quem batiam continência esses torturadores? Nesse processo, não haverá revelação dos atos praticados pelos próprios torturados?
Nesse passo, como seriam julgados hoje, os assaltos a bancos, os seqüestros, os “atentados pessoais”?
Naturalmente que a proposição do ministro suscitou e ainda suscita algum debate.
Sem deixar assentar o tema, eis que o ministro Genro, retorna ao assunto, conforme li no “Consultor Jurídico” de 29 de abril último: está ele empenhado em construir em Belo Horizonte o “Memorial da Anistia no Brasil”, um próprio onde será transferido um acervo de quase 100 mil processos recebidos pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, a ser disponibilizado para os que se interessarem em estudá-lo. Foram destinados para essas obras, R$5 milhões.
E, imagino, extrapolando entusiasmo : “O Estado pede perdão para aqueles que foram torturados. Pedimos perdão às famílias que perderam algum parente. Este é o memorial das vozes que foram caladas. O Memorial de Anistia busca o direito à memória e à verdade, resgatando a importância da luta pela democracia. É a transição de uma política de reconciliação com o nosso passado”,
Se fala em reconciliação e já pediu perdão em nome do Estado brasileiro faça o memorial e deixe lá o acervo quietamente, só ocasionalmente despertado por aqueles que se interessarem em revolver passagens dolorosas que ficaram no tempo.
A Lei da Anistia precisa calar.
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