28/06/2009
Me permito relacionar obras de Kafka ("O Processo" e "A Metamorfose") com esses dramas cotidianos que atribulam as Varas de Família
Não faz muito, voltei a “visitar” Franz Kafka, o polêmico escritor nascido em Praga, então principal província checa da Áustria em 1883. Por isso, há os que defendem ser ele austríaco e não tcheco. Era judeu e escrevia em alemão.
Comecei revisitando “O Processo”.
Não me vali de nenhuma interpretação desse livro sombrio, tantas há, que trata de um processo que respondia Joseph K, o “herói”, sem que o crime fosse revelado. A história tem pouco a ver com críticas ao sistema processual reinante – Kafka era advogado - mas, sobretudo, revela a opressão social, falta de solidariedade representando o processado esse universo de angustiados que caminham pela vida sem compreender bem o significado dos crimes que lhes atribui a sociedade e a própria consciência. Ou a acusação se referia ao suposto “pecado original”, do qual todos nascem com ele maculando a alma?
Chamou-me a atenção uma frase de Joseph K.em visita à Catedral, quando o sacerdote admite que fora provada a sua culpa. A reação do “culpado”:
“ – Mas, não sou culpado – trata-se de um engano. Como poderia ser culpado um ser humano? - Todos somos aqui homens, tantos uns como outros.”
O clima sombrio e angustiante da história tem um epílogo trágico: a morte prematura do acusado.
Há que lembrar que Kafka fora rejeitado pelo pai. Sucedera dois irmãos nascidos antes dele e falecidos prematuramente. Sua complexão franzina gerava desprezo do pai, um “gigante” que o ignorava – e com isso viçou a timidez e o desamor – não chegando a se casar, embora tivesse noivas. Esses fatores têm forte influência sobre suas obras.
No “A Metamorfose”, livro polêmico do autor, que não gostei, numa certa manhã o personagem Gregor Samsa acorda transformado num inseto gigante. A descrição do livro leva a se pensar numa barata...
Todo esse clima teratológico se concentra na mudança havida nas relações com a família. Deixou o “herói” de trabalhar, livrou-se do patrão autoritário. Passou a comer bolores e restos. No começo sua irmã dele cuidava. O pai que vivia das rendas do filho, adaptou-se à nova situação. Todos encontraram trabalho e, num dado momento, o indigente que se escondia no quarto passou a ser um estorvo.
"- Isto tem que sair daqui – exclamou a irmã – é o único meio, pai. Tu simplesmente tens de te livrar do pensamento de que é Gregor”.
Não demoraria muito e o indigente que se anulara morreria. A família se reestruturou aliviada. A irmã de Gregor a quem devotava carinho especial e quem o rejeitara ao final, havia florescido e se tornado uma moça bela e casadoira.
Esse quadro de angustias se firma também em “O Processo”, na falta de solidariedade ao homem “espiritualmente” oprimido e no “A metamorfose”, um sentido de revide ao autoritarismo do patrão e à indiferença do pai a quem sustentava, como a toda família. Restou a ingratidão.
Esses detalhes literários afetaram agora de modo mais intenso a este veterano advogado, que também milita na área de família, habituado com inumeráveis ações nas quais os pais (varões) ignoram os filhos, arquitetando formas para não pagar o que por dever lhes cabe no seu sustento e educação. Nem mesmo a ameaça de prisão os assusta e, quando tal ocorre, a prisão, há casos em que os débitos permanecem pendentes.
As mães, separadas ou simplesmente abandonadas, de regra se responsabilizando pelo sustento e educação dos filhos, em desespero buscam os recursos da Justiça, tão lentos, tão burocratizados no sentido de obterem dos pais (varões) um valor, às vezes irrisório, de ajuda obrigatória nos alimentos.
De certo modo, os pais (varões) veem nos filhos um empecilho para um novo relacionamento, para a constituição de nova família. E se omitem ou desaparecem deixando ao relento crianças aos cuidados das mães nessa luta dura de sobrevivência.
Raramente tenho visto mães que agem do mesmo modo. Algumas em desespero ou em desequilíbrio até praticam o filicídio. A imprensa ocasionalmente noticia. Mas, esses casos são raros.
São esses abandonados os “insetos”, por dolorosa que seja a comparação, que habitam esses lares infelizes tal qual a obra de Kafka.
O que decorre dessas desagregações?
Menores infratores e adultos bandidos. Sei de muitos que se salvaram, porém.
Muitos desses delinquentes cresceram com a marca do abandono. Não houve apoio familiar, a educação foi precária, a escola foi a das ruas.
Quando processados ou mortos pela polícia, há os que culpam a sociedade (Nós) por tais mazelas. Assemelham-se, então, ao personagem K de “O Processo” que foi condenado sem saber bem os motivos: “Mas, não sou culpado – trata-se de um engano. Como poderia ser culpado um ser humano? - Todos somos aqui homens, tantos uns como outros”.
Surge, pois, moral forte nessas histórias corriqueiras e profundamente dolorosas que atribulam as Varas de Família. Nestes tempos conturbados em que se discute por aqui, agora com menor vigor, a diminuição da idade penal, eu me atenho num ponto tão elementar e tantas vezes lembrado, de regra como mera proposição filosófica: estão faltando pais – no plural, no sentido de genitores – que acudam seus filhos e lhes dêem um pouco de carinho. Pouco que seja.
Se não visse isso como algo difícil num determinado segmento da sociedade, diria que muitos males seriam corrigidos apenas com gestos. Eles facilitam a sobrevivência digna. E tendem a propiciar o equilíbrio no futuro da criança e do adolescente.
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