Para estabelecer um contraste entre os escândalos que eclodem no âmago da Igreja Católica, cujos desdobramentos não se sabe até aonde chegarão, proponho-me a levantar algumas questões transcendentes para fugir dessa vileza toda. O artigo foi formulado como crônica e assim mantido.
Explicação
Este artigo, com todos os timbres de uma crônica, quando publicado em outros órgãos teve acolhimento favorável.(1)
Concedo-me uma trégua nas explanações políticas neste portal.
Por conta dos escândalos que afetam a Igreja Católica, resolvi submeter à crítica dos eventuais leitores que me acompanham as proposições que afastam seus adeptos da religião mas não da religiosidade.
No que concerne aos escândalos que se sucedem no âmago da Igreja Católica, receio o que poderá advir ainda com os seus desdobramentos.
Já prenunciando dificuldades, mas não tantas e tão explosivas, republiquei o artigo “Canonização de Pio XII e os escândalos de pedofilia” neste portal. (2).
Naquelas minhas primeiras impressões, já registrava a tolerância no âmbito interno da Igreja aos padres pedófilos. Talvez, tudo se resolvesse, até agora, para esses padres anormais, com a confissão e o “arrependimento”. E nada mudava.
O teólogo Leonardo Boff colocou de modo bem convincente a questão entre o pecado e o delito:
“A pedofilia sempre existiu entre o clero. Mas era tornada invisível. A Igreja apenas via o assunto de pecado e não de delito. Nessa visão, apenas se vê o pecador. No delito se vê a vítima. Delito é crime que deve ser levado aos tribunais. Isso a Igreja sempre se negou a fazer, na falsa idéia de preservar seu bom nome. Isso é uma atitude farisaica e falta de misericórdia e justiça para com as vítimas.” (3)
As comunicações se globalizaram. Agora, não há mais ou como esconder essa sordidez toda.
Reponho esses pontos para estabelecer o contraste com o que vou explanar a seguir, uma homenagem a todos aqueles que indagam sobre valores espirituais e que estão longe ou perplexos com essa vileza toda.
DOS SEM RELIGIÃO
Ficar por horas dentro de um avião constitui-se, para mim, um sacrifício imenso de desconforto, um exercício penoso.
Para realmente esquecer meus timbres claustrofóbicos, numa viagem, decidi que teria que ler um pequeno livro, mais precisamente o Bhagavad Gîtâ (pronúncia: bagavad guitá, que significa “sublime canção”).
Trata-se, segundo sua introdução, de um dos livros mais importantes do mundo, prezado pelos budistas e venerado como escritura sagrada pelos brâmanes (sacerdotes indianos) que, “frequentemente, o citam como autoridade no que se refere à religião hindu.”
O livrinho relata os ensinos da divindade (Krishna) ao príncipe Arjuna, merecedor desses ensinamentos por causa de sua nobre alma.
A busca é pela santidade, considerando que,
“Aquele que se separou dos efeitos dos desejos, e abandonou os prazeres da carne, tanto em pensamento como em ação, caminha diretamente para a Paz. Quem deixou atrás de si o orgulho, a vanglória e o egoísmo caminha diretamente para a Bem-aventurança”.
E a bem-aventurança pode significar a desnecessidade de renascer na terra, “neste lugar de sofrimentos e limitações”, porque aqueles que se uniram ao Altíssimo, “já atingiram a esfera da Perfeita Sabedoria, Suprema Ventura e Vida imperecível.”
Esse diálogo entre a Divindade e Arjuna, é direto, sem intermediários, sem guias, nem gurus: “desiste de todas as obrigações religiosas, e toma-me como teu único refúgio. Eu te libertarei de todas as dificuldades. Não te aflijas.”
Mas, há esta ressalva:
“Há muitos que não descobriram esta verdade por si mesmos e em si mesmos, mas ouviram a doutrina e os ensinos de outros, e respeitam-nos; também estes, agindo de acordo com a doutrina, vencem a morte pela força da fé”.
Com esses princípios claros na mente, desembarco em Lisboa.
No dia seguinte seguiria nos rumos de Évora. Tudo em Portugal é perto. Duas horas de ônibus e se chega a essa cidade cercada por muralhas construídas pelos romanos. Rumo à Igreja de São Francisco. Na sua entrada, numa pequena placa, há uma mensagem atribuída a Santa Tereza de Jesus:
“Nada te perturbe,
Nada te espante
Tudo passa
Deus não muda e a paciência tudo alcança
Quem Deus tem, nada lhe falta
Só Deus basta”
Ainda vivas as mensagens contidas no Bhagavad Gîtâ, achei bastante interessante essa pequena mensagem, porque se “só Deus basta”, o caminho seria, com paciência, que “tudo alcança”, estabelecer um diálogo direto com Ele. Um diálogo franco como relatado no Bhagavad Gîtâ. Mas, depois de conhecer a sacristia da Igreja mantendo impressões agradáveis, aquelas levezas todas, voltei para o chão duro. Um impacto inesperado contrapondo-se a essas vibrações experimentadas e eis de volta a réstia de uma angústia. Do lado da Igreja de São Francisco, há a Capela dos Ossos, construída por franciscanos no século XVI na qual, nas paredes, estão incrustados, cobrindo-as totalmente, cerca de cinco mil crânios humanos e, nos pilares, até mesmo ossos de membros inferiores.
Todos esses crânios e ossos foram obtidos em cemitérios precários que existiam ao lado das igrejas. E no pórtico, no alto, se lê: “Nós ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos.”
Claro que tal capela tem por objetivo lembrar a fragilidade do ser humano, concitando-o à humildade, a reflexão, sacudindo-o de sua soberba e da ganância.
Todos esses simbolismos e mensagens das duas capelas têm um sentido: o de chamar a todos à transcendência da alma, da vida e ... da morte.
Saí da Capela dos Ossos não transtornado pelos crânios e ossos, mas por uma indagação que havia relevado até então.
O Bhagavad Gîtâ traz lições de como não voltar a reencarnar neste “lugar de sofrimentos” o que pode se dar com a prática da virtude e a busca de Deus na própria interioridade mas não dá pistas do porquê encarnamos.
Por que temos que estar “neste lugar de sofrimentos e limitações”, seguir uma trilha? Por que certos episódios da vida eclodem sem o nosso controle? Ou são eles eventos insondáveis decorrentes da lei da causa e efeito a que nos propusemos a enfrentar? Ademais, neste mundo, são notórios os semelhantes que transmitem virtudes elevadas e ao seu lado outros que parecem viver num estágio pouco acima da barbárie. Os pós-graduados ao lado dos primitivos, dos penitentes.
E aí surge aquela indagação tão antiga: qual o sentido da vida?
Que mundo é este?
E muitos podem até afirmar: “sou feliz neste mundo, pratico virtudes, mas não a ponto de renunciar a tudo em busca da “Vida imperecível.”
Por que terei que fazê-lo?
Há alguns anos, o João Paulo II referira-se ao crescente fenômeno do denominado agnosticismo na Europa, acentuando “que a verdadeira fé foi substituída por “um sentimento vago e pouco comprometido que equivale a um ateísmo prático”.
Antes uma explicação sobre o “agnosticismo”, baseado na Wikepédia que bem sintetiza o significado: o termo foi cunhado pelo professor Thomas Henry Huxley, “avô paterno do escritor Aldous Huxley (autor de Admirável Mundo Novo) numa reunião da Sociedade Metafísica, em 1876”. O agnóstico nega tanto o Ateísmo como o Teísmo porque “acredita que a questão da existência ou não de um poder superior (Deus) não foi nem nunca será resolvida (...) e que nós não sabemos nem poderemos saber se um deus existe.”
Dados do ano 2000 apurados pelo IBGE davam conta de 7,4% da população brasileira revelaram não possuir religião, sem perder, necessariamente, a religiosidade. Esses porcentual subira em 2005 para 7,8%. A mudança de religião ou o afastamento de qualquer delas pode ter muitas motivações pessoais, mas até mesmo de ordem filosófica, como o da liberdade de pensar, de se autoquestionar sem a influência de dogmas, de religiosos, de doutrinas, de fanatismos...e de abusos.
E isso pode ter como causa o desencanto casual com religiões que à exaustão repetem ensinamentos bíblicos literais que não satisfazem nestes tempos de atribulações redobradas ou se desiludem com religiões-negócios, nas quais Deus é mero coadjuvante. Os tempos são o da informação.
E há a falta de respostas nesses mistérios que permeiam a vida, quando pensada. O seu sentido, a partir do nascimento ou dos nascimentos, para os que acreditam na reencarnação.
Com essas indagações muito optam, então, por tentarem um diálogo direto com a Divindade (“Quem Deus tem, nada lhe falta; só Deus basta”).
Assim esse “contato direto” entre o fiel e a Divindade não é algo novo. Para ficar num referência que sintetiza esse sentimento, há que lembrar as proposições de Krisnamurti, cujas idéias tiveram repercussão por décadas nesses círculos esotéricos que meditam sobre as coisas transcendentes da existência.
Antes, algumas informações de quem foi ele: místico-filósofo, nascido na Índia no século 19, rejeitou sua iminente condição de guru como planejava a Sociedade Teosófica que o educara e o iniciara para essa atribuição. Disse ele:
“A mente religiosa difere completamente da mente que crê na religião. Não podeis ser religiosos e ao mesmo tempo hinduístas, muçulmanos, cristãos e budistas.” (4).
Bom que se esclareça que na minha visão, Krisnamurti deixa muitas de suas proposições no meio do caminho.
No meio científico, fiquemos com frases expressivas de Stephen W. Hawking, extraídas do seu livro “Uma Breve História do Tempo”, na sua conclusão ao suscitar o debate “sobre a questão de por que nós e o universo existimos”: “Se encontrarmos a resposta para isto teremos o triunfo definitivo da razão humana: porque, então, teremos atingido o conhecimento da mente de Deus.” Não deixa de indagar porém: “Mas, se realmente o universo é completamente autocontido, sem limites ou margem, não teria havido começo, nem haverá fim; ele seria simplesmente”. E pergunta: “Que papel estaria reservado ao criador?”
Como aceitar a imensidão do universo em expansão e negar a existência de alguma inteligência Superior que a tudo controla?
Com freqüência divulgam-se fotos obtidas pelo telescópio Hubble que revelam cenas lindíssimas de fenômenos captados, paisagens inimagináveis do universo em expansão. Que pinturas são essas? Quem é o artífice dessa obra que nossa inteligência não atina? Um mero “big bang”?
O papa Bento XVI, recentemente zombou dessa noção científica de um “cosmo matematicamente ordenado”, porque “sem Deus, as contas não fecham para o homem, para o mundo e o universo”.
A questão toda está em imaginar um dia compreender a mente de Deus. Esse Deus-mistério que nos leva a esse nível de perplexidade e ininteligências. Insondável.
Bem, vamos encerrando. Esse “caldo de cultura” deve ser a causa do aumento daqueles que se declaram “sem religião”. Mantém a fé, meditam e podem até partir para a contemplação – “meditação profunda”, segundo o Aurélio.
Mas, buscando em si mesmos a sua religiosidade. No silêncio de sua interioridade, na sua intuição. E na sua Paz.
Referências
(1) Este artigo tem relação com “Onde estava Deus” – edição neste portal de 12.10.2009
(2) Edição neste portal de 06.04.2010
(3) Entrevista ao jornal “O Estado” de 20.04.2010
(4) Francisco Ayres, “Krisnamurti” – Ed. Soma/1984
Foto: Imagem telescópio Hubble (Google imagens)
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